Capítulo II



UMA FUGA, TRÊS FERAS
E UM GATO





     Saí correndo feito louca pelas ruas do Rio de Janeiro. Corri para o leste da cidade. Em certos momentos eu olhava para trás, temendo por algo que não pude compreender. Alguns becos escuros, outras vielas iluminadas. No meio de tudo aquilo, dei-me a oportunidade de chorar e, chorei.

     Tropecei enquanto corria, e caí outras duas vezes. Meu vestido de cor pérola estava imundo, tão imundo quanto ficaria minha alma casando-se com um alguém sem sentimento algum.

     Enquanto corria percebi que um gato seguia-me. Vinha atrás de mim correndo. Era um felino bonito, malhado em preto e branco. Não sei como cheguei a esta conclusão, mas, tive a impressão que aquele animal era o mesmo que miara sob o telhado de minha morada. Era ele, eu sabia disto.

     Quando a exaustão tomou-me as forças, parei numa viela sem saída. Notei que lá havia alguns objetos velhos, dentre eles um pedaço de colchão, e aí mesmo deitei, o bichano por sua vez veio aleitar-se ao meu lado.

     A lua estava brilhosa e, com sua luz iluminava a imponente noite, como que afastasse de mim toda a escuridão. Todo frio e medo. Ouvi algum barulho. Alguém estava se aproximando. Abri meus olhos com descrição. Eram três homens. Estavam vestidos de negro e vinham ao meu encontro de cabeça baixa e com um sorriso malévolo na face.

     Meu instinto de bruxa prevaleceu em mim mais do que o próprio medo. Fiquei de pé, em posição de ataque. Mostraria-lhes o resultado de anos de práticas mágicas. Podia sentir um cheiro estranho vindo deles. Um cheiro forte e podre. Eram lobisomens!

     Lembro-me de alguns ensinamentos de papai, e um destes falava sobre o cheiro inconfundível dos lobisomens e dos vampiros, os primeiros possuíam um odor fétido que nenhum humano conseguiria ter e, os segundos tinham um cheiro doce e atraente.

-O que querem? – Perguntei numa mistura estranha de coragem e temor. – Acho melhor saírem daqui. Agora! – Gritei. Meu brado não passava de uma estratégia mal sucedida de amedrontá-los. – Vocês não sabem com quem estão lidando. – Eu sabia que já deveria ter atacado-os porque agora eles estavam vindo mais próximos a mim e com o mesmo sorriso satânico no rosto. Um deles levou a mão à boca, fazendo um gesto para que eu ficasse em silêncio.

     Logo, eles apressaram o passo em minha direção. Comecei a transpirar bastante, fiquei gelada, nervosa, algo que estava em meu interior, no mais profundo de mim veio à tona. Aqueles homens hesitaram em avançar. Não entendi, mas, não questionei. O sorriso antes apavorante tinha se desfeito naquele instante. E exalou-se pela brisa tão leve e cálida da noite, um perfume diferente.

     No mesmo momento os três homens ergueram seus olhos em direção à grande lua cheia. Nunca tinha presenciado tal transformação. Eles curvaram-se ao chão, retorciam e gemiam numa fusão de dor e prazer. Seus pêlos, outrora curtos e humanos mutavam-se no tamanho, ficando grandes e, alastraram-se pelos seus corpos. Suas roupas se rasgaram, deixando-os nus e seus ossos contorciam-se debaixo de suas peles. Suas mãos e seus pés mudaram de tamanho, ganhando proporções animalescas. Cresceram-se também suas orelhas ficando grandes, pontudas e peludas. Seus narizes transformaram-se em focinho, seus olhos amarelaram, seus dentes se deram lugar às enormes presas.

     Senti vontade de gritar mas, me sentia estranha, com uma imensa coragem, embora tivesse em mim o receio de acabar morta, já que eram três contra uma – covardes.

-Ainda sim, não tenho medo de vocês. – Disse para eles visando provocar-lhes medo, e para mim, como forma de encorajamento.

     Aquele gato que antes havia me acompanhado passou roçando em minhas pernas e colocou-se entre mim e as três feras. E mais uma vez pude testemunhar mais uma mutação. O bichano começou a crescer tomando forma humana. Seus pêlos antes em preto e branco desapareceram e, à minha frente surgiu um homem. Era um jovem muito bonito – não nego. Alto, cabelos lisos e castanhos, olhos verdes e provocantes. Estava nu, eu sabia que deveria tapar meus olhos – se fosse em outra situação, que não em um momento de vida ou morte.

     Ele estava ali. Era um bruxo – presumi. Estava disfarçado de gato o tempo todo. Um dos lobisomens deu um uivo profundo e ensurdecedor – era como se desse ordem para que seus outros dois companheiros avançassem.

     E eles avançaram.

-Volassarne! – Conjurava o bravo homem-felino, fazendo com que as feras recuassem. – Fique atrás de mim! Fique atrás de mim! –Repetia pra mim, para que eu me abrigasse em suas costas.

- Etruavizs! – Proferi, ferindo-os. Neste momento recebi um sorriso daquele em quem me abrigava. – Pravasco! – E este foi o último ataque, em seguida, os três lobisomens fugiram. Naquela noite eu tinha beijado a face gélida da morte e, quase deixei-me cair em suas armadilhas traiçoeiras.





UMA CONVERSA E DOIS ESTRANHOS




     Meio sufocante e ofegante, ri. Rimos ao final. Sentamos naquele chão que outrora havia se transformado no palco de nossa batalha – tão breve e calorosa batalha. Recostei-me na parede de uma velha casa, construída ali mesmo; no beco.

     Eu o olhei incrédula de sua existência. O máximo que conseguia naquele instante era fazer menção em falar – mas não falei – e ri muito desta minha incapacidade temporária. Ele cobriu suas vergonhas com alguns pedaços de pano que sobraram das roupas daqueles lobisomens – covardes.

     Sentou-se próximo a mim. Ficamos nos olhando, e eu, sempre desviava meu olhar do seu, rindo das lembranças do susto pelo qual havíamos passado há pouco – sim, algumas vezes eu costumava rir do medo, dos sobressaltos .

-Está tudo bem? – Perguntou-me um tanto curioso por causa dos meus risos. – Por que ri? Conta-me? Não é pelo tamanho do meu... – Olhou dentre as pernas, e rimos juntos.

-Não, não. Não exerci tal imoralidade com meus olhos enquanto beiráva-mos o precipício da morte. – E meu riso ao poucos se desfez.

-Aconteceu em ti algo quase que impossível de se ocorrer.

-O que houve comigo? – Perguntei.

-Teus olhos clarearam. Ficaram amarelos como duas estrelas cadentes, daquelas que enchem o céu de beleza e o coração dos apaixonados de amor e poesia. Teus dentes tão brancos e certos, alongaram-se, e se fizeram presas. –Enquanto ele falava meus olhos estavam fixos nos seus. Eu estava aflita, mas, contida. – Você era bruxa e vampira ao mesmo tempo. As duas raças em uma pessoa só.

-Você deve estar enganado. Enganado. É isso. –Passei a olhar para o chão. Meu corpo tremia, a temperatura tinha baixado e somente naquele momento eu havia percebido. Silenciei. No fundo eu sabia que poderia ser algo assim como aquele estranho estava falando-me. Aquela força estranha que saíra dentro de mim... aquilo nunca tinha acontecido comigo. Nunca. Ele segurou minha mão com delicadeza e virilidade. Sorriu como se tivesse encontrado alguém que há muito procurava. Alguém importante.

- Qual é o nome de tal graciosa senhorita?

-Senhora. Infelizmente, senhora. Estou prometida a um estranho. Ouvirás falar sobre meu casamento. Em breve, como disse-me papai. – Silenciei.- Meu nome é Clara, Clara Cromwell Verena de Albuquerque. E como te chamas?

- Cromwell... – repetiu ele de um forma estranha.

- Cromwell é o meu sobrenome.

- Não, não. – Gaguejou um tanto nervoso. - Quis dizer... meu nome é Victor.

-Prazer. Victor de...?

-Victor Verena de...

E antes que qualquer outra palavra pudesse nascer dos seus lábios, papai, mamãe, Carolina e Alice surgiram. Vinham correndo às pressas. Tinham ouvido os uivos daqueles lobisomens e, meio que desesperados chegavam ao meu encontro.

     Quando dei por mim, ele, Victor, já não estava mais lá. Sumiu. Meu pensamento saiu de mim, procurava uma explicação para aquilo tudo que acontecera naquela noite. O casamento arranjado, os lobisomens, o gato que era um bruxo e uma bruxa que poderia ser a mistura de dois clãs eternamente rivais. Sim, era muita coisa para uma pessoa só. E meu coração sangrava de desespero e, talvez, amor.

     Mamãe encheu-me de afagos, estava muito preocupada, senti isto ao abraçar-me, pude perceber seu coração que pulsava disparado. Carolina olhava-me com um ar de altivez; parecia lamentar-se por eu estar viva, como lhe agradaria minha morte, mas, não jamais lhe darei este gosto.

     Papai olhava-me como se sentisse culpa. Culpa por tudo, principalmente por ter arranjado-me um casamento, mas, eu o conhecia muito bem, e sabia que não voltaria atrás em sua decisão. O orgulho o consumia.





SILÊNCIO, LEMBRANÇAS EUMA OBRIGAÇÃO



     Voltamos pra casa e, durante o percurso não demos uma só palavra. As ruas vazias enchiam meus olhos, enquanto meu pensamento estava longe dali. Mamãe segurava a minha mão com grande preocupação e carinho. Tudo o que eu queria era contar-lhe tudo o que acontecera naquela viela imediatamente, mas não o fiz.

     Insisti continuando a olhar para fora da carruagem. Ouvimos ainda um uivo ao longe e ficamos atentos. Temi um novo ataque por parte daquelas tenebrosas feras da noite. Mas, nada nos aconteceu.

     Entramos em nossa morada. Ia subindo para meu quarto quando papai nos chamou para conversar, sua aparência nos passava preocupação e, talvez, medo. Era algo de muito grave que o preocupava, papai jamais temia coisas pequenas.

     Mamãe, Carolina e eu sentamos no sofá, prontas para ouvi-lo falar. Ele parou um instante como quem procurava forças para nos comunicar o motivo de seu tão profundo medo.

- Bom. O que aconteceu hoje só foi uma amostra do que está por vir. Estamos enfrentando uma guerra. Guerra esta que antes era silenciosa e discreta, contudo, ela vem tomando outros rumos. – Levantou-se da poltrona e começou a andar pela casa, e isto era um sinal de que as coisas não iam nada bem. – Estamos sendo vigiados.

- Pelos lobisomens? – Perguntou-lhe mamãe.

-Não só eles, como os vampiros. Caçadores de recompensas. Darão suas próprias vidas se for preciso para nos matar.

-E por que não fugimos? – Questionou Carolina - temo que aconteça conosco o mesmo que aconteceu com Clara e, quem sabe, não tenhamos a mesma sorte.

-Não podemos fugir. – Disse mamãe muito convicta. – Se o fizermos estaríamos dando-lhes a entender que somos fracos, como ratos que fogem amedrontados. Isto não. Permaneceremos aqui.

-Até porque – completou papai- Clara logo, logo irá se casar com o rei dos andróides e, estaremos mais fortes do que nunca. Esta aliança é muito importante para nós. – Eu sabia que aquelas palavras eram somente para mim. – Com o apoio dos andróides seremos quase que invencíveis. Voltaremos à Europa, subordinaremos os lobisomens e bruxos e todos os outros clãs ao nosso poder. Regeremos o velho mundo com mãos de ferro.

-Acho que já ouvi e vivi demais por hoje – disse – agora subirei ao meu leito, e amanhã será um novo dia.

-Sim, filha querida. Será. Descanse, amanhã, se quiser, conversaremos sobre o dia de hoje.

-Como quiser, mamãe. Boa noite. – Despedi-me.

     Entrei em meu quarto, fechei a porta rapidamente e chorei. Derramei-me em lágrimas, por medo, coragem e amor, enquanto escrevia tudo nas páginas brancas de meu diário. Meu quarto escuro se fazia naquele momento para mim um perfeito esconderijo. Abracei-me aos travesseiros recobertos por uma capa feita de seda branca e chorei.

     Se eu fosse uma fênix, naquele instante eu me fazia cinzas, para mais tarde ressurgir de minhas fraquezas e lamentos, mais forte, segura e independente. – Preciso de você – disse para mim mesma.

Fechei meus olhos, deixando-me levar pelos doces braços do sono, mas, as trevas daquelas feras e, o mal que ainda havia de vir faziam-me despertar assustada.

     Como podia eu ser vampira e bruxa ao mesmo tempo? Isto preocupava-me de tal modo que, podia sentir o sangue correr em minhas veias e o meu coração bater forte e amargurado. Quem poderia entender-me? Tornei-me um enigma par mim mesma – senão bastasse a tatuagem que eu carregava presa à minha pele.

     A aurora já apontava no horizonte, não que eu a tenha visto, mas, os primeiros raios do sol começavam a invadir meu quarto que antes era tomado pela escuridão. Sim, era um novo dia que anunciava-se à mim.






DESBAFO



     Minha porta estava trancada e, quando recordei-me da noite passada tive um surto de raiva. Joguei ao chão todos os cobertores que antes estavam sobre a cama. Quebrei alguns vasos e bonecas de porcelana.

     Eu sabia ser boazinha, e tornava-me ainda melhor quando não queria ser tão boa assim – porém, preferia evitar a pôr este meu lado à mostra. Não me achava uma Julieta de Shakespeare tão pouco a Catarina, do mesmo autor. Eu sou uma pessoa normal – se é que, naquele momento, descobrir-se como uma bruxa e ao mesmo tempo vampira podiam ser dignas de alguma normalidade.

     Assim que o som quebradiço dos objetos que eu lançava ao chão e à parede ressoaram por entre os cômodos do Palácio, pude notar passos rápidos, firmes quão aflitos, vindo em direção ao meu quarto – era minha mãe.

- Querida! – Batia ela incansavelmente na porta trancada – abra! Abra esta porta imediatamente, Clara Cromwell!

-Deixa-me em paz, mamãe! Quero ter o privilégio de gozar ao menos neste momento, da raiva que jazia em mim! – Gritei, como se fossem as últimas palavras a abandonar minh’alma – Um casamento arranjado com alguém que não se ama, uma perseguição que pode pôr fim à minha vida, e um alguém a quem se ama, mas, desaparece deixando-me sozinha!

-Deixa-me entrar, filha! – Eu sabia que ela iria conjurar algum feitiço para adentrar no quarto e, assim o fez – tuttevalium! – E a porta se abriu brutalmente, então, assim que vira-me, correu ao meu encontro e envolveu-me em seus braços, do jeito que só ela sabia fazer. –Acalma-te, querida! Tudo irá ficar bem. Acredite.

-Mamãe. Ontem quase morri. Aconteceu que um bruxo desconhecido, chamado Victor...

-Victor?! –Repetiu ela em tom que misturava estranhamento, conhecimento e temor. –Afaste-se imediatamente dele. Acho que devemos partir...

-Mas, por quê? Ele salvou-me daquelas feras. Antes felino, transformou-se em homem e com grande coragem defendeu-me do perigo que juntos compartilhamos naquele momento: o de sermos mortos!

-Conversarei com teu pai, iremos fugir do Rio o mais breve possível. Tudo de resolverá em breve, filha...

-Me diz, mamãe! Porque devo afastar-me dele? Pareceu-me um bom rapaz. Seus olhos mexiam comigo. E o seu sorriso deixava-me sem graça. Eu gosto dele!

-Já disse para deixá-lo! – Disse-me mamãe exaltada como nunca a tinha visto, parecia ter muita coisa por de trás daqueles olhos e sorriso. Não sei, mas, tive a impressão de eu ter algo haver com esta preocupação.

     Eu podia ser muito romântica e boazinha, contudo, não deixava de lado a inteligência e um pouco de maldade quando era preciso. Victor tinha mexido comigo, isso eu não podia negar, afinal, existe algo mais lindo que salvar a vida de uma dama em perigo? – confesso isto é muito romântico, chegando ao ponto de ser ficção, mas, aconteceu, e isto foi um tanto quanto utópico.

-Mamãe, posso estar enganada, mas, eu e Victor temos alguma coisa a haver que não sei?

     Ela gaguejou, estava nervosa. Pude ver a palidez em seu rosto, suas mãos transpiravam e sua cabeça inclinou para baixo. Ela não tinha coragem de olhar em meus olhos – e, pra falar a verdade, nem eu nos seus. Todavia, forcei-me a olhá-la.

-Afaste-se dele! – Proferiu já saindo do quarto – Conversarei com seu pai.

     Ela saiu do quarto, contudo, eu sabia que ela estava ouvindo-me, escondida, encostada à porta – O que é que Clarissa Cromwell faria? – Perguntei em voz alta e, senti que havia deixado o local, provavelmente fora conversar com papai.

     Tinha alguma coisa nessa história toda que eu não sabia; e eu estava disposta a desvendar este enigma. Tranquei a porta do meu quarto, despi-me e fiquei a admirar aquela tatuagem cravada em minhas costas Pelo espelho. Depois escrevi em meu diário tudo o que havia acontecido, só ele, o diário, podia compreender-me. Desci para tomar o café da manhã e mandei chamar Alice imediatamente. Daria meu primeiro passo ao encontro da minha verdade naquele mesmo dia.





O Elfo

     Tomei café sozinha, na imensa mesa que se apresentava em minha frente. O brilho do sol, os talheres, as xícaras, os demais móveis e eu, éramos as únicas coisas ali presentes. Mamãe, papai, Carolina e Anita haviam saído.

     O silêncio fazia-se ouvir por entre os cômodos do grande palácio que desde minha chegada ao Brasil se tornara minha morada. Eu estava tranqüila. Havia em mim um espírito de reação a tudo que ultimamente tinha se passado – mas, o guardei em minhas entranhas, afim de, fazer-lhe melhor uso em um momento mais oportuno e não aquele.

     Um forte vento entrou pelas grandes janelas de cristal do lado leste do palácio. O aroma de flor de cetrus preencheu todo o local – imaginei de início que o vento fosse um caso natural e espontâneo e que Anita estava voltando de onde quer que tenha ido – afinal, era ela, a pessoa que notei mais gostar de cheirar à flor de cetrus. Mas, logo eu perceberia que estava enganada.

       Um sujeito entrou na sala de jantar por uma janela e, caiu rolando ao chão. Assustei-me de tal modo que gritei. A minha morte foi a primeira coisa que temi – seria ele um caçador de recompensas com a missão de matar-me? – Perguntei-me cheia de medo pela resposta.

       Ele era um elfo. Pele esverdeada e em sua grande maioria coberta por símbolos circulares de cor verde vessie, olhos tão verdes quanto duas esmeraldas esféricas, cabelos lisos, grandes e negros sob forma de uma grade trança caia sobre suas costas largas. De estatura alta, estava vestido somente com uma calça, feita de um material semelhante aos sacos de pano que serviam para transportar o café das grandes fazendas do interior de São Paulo. Corpo forte e viril, orelhas pontudas e três dedos em cada pé.

     Três pintas verdes da mesma cor dos símbolos circulares de seu corpo marcavam seus antebraços em ordem de tamanho crescente. Um ramo de cetrus com folhas tão pequenas quão perfumadas estava assentada sobre sua cabeça com o formato de uma coroa.

Quando preparava-me para lançar-lhe o feitiço do Schravarrous, notei que aquele individuo estava amedrontado mais que eu mesma. Ainda assustada perguntei o que ele queria.

- Senhora. Meu nome é Élferus – Disse sussurrante e assombrado. Seus olhos pareciam procurar por algo que lhe punha muito medo. – Venho trazer-lhe notícias, as quais haverá de ter muito interesse em possuí-las.

-Quais elfo? – Perguntei em tom de ameaça.

-Querem matar-te. – Disse-me ao pé do ouvido. – Não adianta fugir. Eles vão encontrar-te.

-Eles quem elfo? Fala!

-A irmandade. Já falei mais do que devia, senhora. Tenho que fugir antes que me encontrem, e enquanto à você, procure o senhor Mc Feeld na rua do Marquês de Klavaroski, ele saberá contar-lhe tudo que aconteceu e o que está acontecendo. Procure-o enquanto se pode.
     
      E depois saltou pela janela à fora. Sumiu. Meu coração estava mais temeroso que nunca. Mandei chamarem Alice, minha amiga, em quem sempre depositei minha total confiança.

     Tínhamos algo à descobrir sobre mim. Sobre tudo, e isso era o que mais preocupava-me. De fato, quase dava para eu perceber o cheiro da morte a rondar-me. Porém, o meu instinto de coragem prevalecia pouco a pouco sobre o temor que se abatera em minha alma. Agora só me restava ouvir o que o senhor Mc Feeld tinha a dizer-me.






LIBRI & VENEFICUS




     Assim que terminei o desjejum pensando nas palavras daquele elfo, alguém bateu à porta. Domênica, nossa outra empregada foi atender. Era Alice, minha melhor amiga.

      E, antes que ela pudesse dizer-me algo contei-lhe todos os fatos que haviam acontecido até aquele momento. Uma cara de surpresa foi a resposta que recebi de Alice.

-Vamos à livraria imediatamente. – Disse eu pegando-lhe pela mão e ela balançou a cabeça concordando comigo. – Minha vida está em jogo.

     Partimos. Andando em passos largos e um tanto apressados, olhávamos ao redor – algum caçador de recompensas poderia estar a nos seguir. Alice ficou impressionada tão logo preocupada pelo que pudera acontecer-me, e mesmo assim, disse-me que nunca abandonar-me-ia.

-Se não fosse tu mesma a dizer-me tal coisa jamais poderia acreditar. – Sussurrava-me Alice enquanto quase corríamos pelas ruas do Rio. – Mas, se além de bruxa tu és vampira, então não deverias tu queimar quando a luz do sol te alcança?

-Eu ainda não havia pensado tal coisa. Amiga, e se tenho meu lado vampira, então, alguém de minha família também o é. Digo, algum ancestral meu era vampiro, totalmente vampiro, então, teve relações com alguém do clã dos bruxos. Não é? Pelo menos uso dessa lógica.

     Entramos na Rua do Marquês de Klavaroski, estava calma, vimos apenas três pessoas que andavam pelas calçadas. Pareceu-me uma rua silenciosa mista de mistério e tranqüilidade. A partir dali, Alice guiou-me – ela que costumava comprar livros no estabelecimento do senhor Mc Feeld.

- Chegamos. – Disse ela parando em frente à uma porta de vidro escuro. – Livraria Libri & Veneficus, a mais antiga livraria de toda capital do império.

    Entramos ali. Era um espaço pouco iluminado, lembro-me que do teto descia um raio de luz solar, que penetrava por telhas transparentes, postas propositalmente para clarear o local – mas, parecia pouco eficiente.

     Grandes estantes de madeira envernizada armazenavam livros variados, de tamanhos e épocas diferentes. Dava para se ver casas de aranha por toda a parte, parecia que ninguém entrava ali faz tempo – exceto Alice e o próprio Senhor Feeld.

     Notei o som de gotas de água cair ao chão enquanto adentrávamos o lugar, parecia que algum encanamento havia furado. Ao olhar para meus pés vi uma aranha passar por perto, hesitei assustada. Alice parecia muito familiarizada com tudo aquilo, levava-me por entre as imensas pilhas de livros e demais objetos antigos.
     Andamos, até que paramos em frente à um grande balcão, velho, empoeirado e abarrotado de coisas, como toda a livraria. Alguém se mexia ali atrás, parecia falar sozinho, levantou-se dali um senhor, aparentava ter entre quarenta à cinqüenta anos – no máximo.

    Cabelos brancos embaraçados e arrepiados – com uma leve calvície que começava a aparecer em sua fronte. Olhos azuis e profundos, um nariz fino e reto, bochechas rosadas, de baixa estatura, pele clara queimada do sol. Olhava-me tanto que desviei o olhar algumas vezes – e, por um instante dava-se para notar os sons dos ratos que ali existiam.

- Senhor Mc Feeld – disse Alice – esta é a duquesa Clara Cromwell Verena de Albuquerque, minha melhor amiga. Ela tem um assunto a tratar com o senhor.

- Clara Cromwell... – repetiu o velho com aparência pálida e incrédula – A que devo a honra de tal presença em minha humilde livraria? – Cumprimentou-me curvando-se à mim.

-Senhor Mc Feeld, quando eu começar a falar-lhe o que aconteceu comigo possa ser que me chame de louca, mas, peço que acredite em mim.

-Senhorita. É mais fácil eu pedir-lhe que acredite em mim e que não me chame de louco. Acredite.

-Bom, sendo assim- tomei fôlego para contar-lhe minha história. –Desde criança possuo alguns sinais em minhas costas, minha mãe e meu pai nunca me contaram ao certo por que os tenho gravado em mim. Desde então venho procurando compreendê-los, contudo, em sucesso. Sou bruxa, e minha família veio da Inglaterra, fomos expulsos pela Rainha ao perceber que nosso clã armava um golpe para derrubá-la do poder e nos estabelecer no comando daquele país.

-Continue. –Disse-me o velho.

-Enfim, estou sendo procurada por caçadores de recompensas. Lobisomens. Eles tentaram matar-me, entretanto, um rapaz, bruxo, chamado Victor salvou minha vida. Mas, naquele momento ele disse-me que meus caninos haviam crescido e concluímos que eu poderia ser a mistura de vampiros e bruxos. Não entendo como isso é possível. Não descobri nenhum ancestral da minha mãe ou do meu pai que fosse vampiro.

-Você não contou nada disto à eles, contou?

-Não. A única que sabe de tudo é Alice, minha melhor amiga. – Ouvindo-me proferir tas palavras Alice abraçou-me – ainda tenho outra coisa para contar-lhe. Poucos momentos atrás, um elfo, que atende por nome Élferus invadiu minha casa, e me aconselhou a procurar o senhor, ele disse-me que você poderia me ajudar.

-Élferus?

-Sim.

     O velho homem saiu de trás do balcão e conduziu-nos para uma sala mais reservada – era como um escritório. Eu e Alice sentamos em duas poltronas, macias e confortáveis, enquanto o senhor Mc Feeld começou a caminhar de um lado para o outro, às vezes olhando seus próprios pés, outras vezes olhando a mim. Parecia preocupado ao mesmo momento, pensante – muito pensante.







SOBRE ALICE




     Alice era minha melhor amiga. Uma mulata de cabelos tão negros como a noite que desciam até a altura de seu cotovelo em forma de cachos perfeitos.

     Tinha a voz meiga e doce, acreditava em anjos e outras coisas celestiais. Aos domingos peregrinava em direção à Igreja com seu pai, o Conde da Gávea, senhor Guilherme – que era toda sua família. Sua mãe havia morrido no parto de sua irmã e esta última também veio a falecer em seguida.

     Por intermédio da amizade que havia estabelecido entre meu pai e o Conde Guilherme eu acabei por graça do destino ou façanha da vida conhecer Alice. Éramos ainda pequenas, desde então nos demos como irmã uma a outra.

     A única humana que sabia de toda minha história. A curiosidade e inteligência eram traços marcantes na personalidade forte de Alice. Uma vez, pensou em ser freira – mas, tratei de tirar esta ideia de sua cabeça, a caso decidisse por sê-la eu ficaria só – e a solidão não era muito de meu agrado.

     Descendente de negros africanos, tornou-se um símbolo de vitória para a gente de sua cor – talvez a única mulata da nobreza brasileira, e isto não lhe trazia constrangimento algum, pelo contrário, era seu orgulho. Amava seu povo africano e a ele servia no que chegava ao seu alcance.

     Ela residia no Palácio da Gávea que ficava a alguns instantes de Ipanema, onde moro com minha família. Sempre corajosa, Alice ajudava-me no que fora preciso, e não seria diferente naquele momento – o momento de minha verdade.