Capítulo III



A FARSA E UMA CONTRADANÇA



     Nervoso, procurava palavras para contar-me algo desconhecido por mim há muito tempo. Aquela sala pintada em tom pastel, com pilhas de livros e estantes antigas, um quadro pintado por Jean-Baptiste Debret chamado de o guerreiro indígena a cavalo emprestava àquele ambiente um clima clássico. Uma grande janela com a vidraça empoeirada estava aberta, deixando transpassar por si a luz cálida do sol e, através das frestas podíamos sentir o frescor de uma brisa suave.

-Acho que chegou o momento que esperei durante anos. – Disse-me pesaroso – Há muito tempo atrás, nas terras do Velho Mundo onde predominava a soberania dos anglo-saxões viviam os bruxos. Todas as raças mágicas compartilhavam de igualdade e fraternidade exceto, os vampiros, que invejavam os bruxos devido à sua intimidade com a magia. Até que um dia, sete dos mais poderosos feiticeiros que já existiram acordaram entre si a escreverem um livro que possuiria os mais imponentes feitiços.

     O senhor Mc Feeld fez uma pausa. Sentou-se em sua poltrona reclinável, do outro lado da mesa e, de frente a mim e à Alice continuando a narrar os acontecimentos.

-Foi chamado de: O Livro Empírico. Acho que a senhorita já ouviu falar de Clarissa Cromwell, certamente.

-Sim, - respondi de imediato e um tanto quanto curiosa, temendo algo que eu ainda não sabia o que era ao certo – minha mãe falou-me sobre ela. Contou-me que era uma grande mulher e tornou-se heroína, mas, o que ela fez eu não sei, inclusive, meu segundo nome faz uma homenagem a ela. Tenho-a como um modelo para mim.

     O velho olhou-me com ternura e tristeza. Estendeu a mim suas mãos macias e nelas eu segurei – por educação mas, confesso que eu estava com medo. Olhei para Alice, e pude notar que estava mais impressionada do que eu – você é filha dela, querida. – Proferiu o velho abaixando a cabeça e soluçando de tanto chorar.

-Mas, como isto é possível? – Indaguei deixando suas mãos vazias estendidas sobre a mesa. – Eu sou filha da duquesa Paloma Verena de Albuquerque e do duque Marcos Verena de Albuquerque! –Gritei com lágrimas aos olhos. Tudo o que vivi durante toda minha vida fora uma mentira.

     Aquelas pessoas que cuidaram de mim quando eu caía enferma, que conversavam comigo com intimidade de pais, nada mais eram do que estranhos mascarados de uma mentira que, para mim era uma verdade inquestionável.

     Além do meu desconhecimento sobre mim mesma, agora eu encontrava-me cercada por desconhecidos que se diziam ser familiares meus. Meu mundo havia caído, assim como caía aquelas gotas d’água ao chão em algum canto dentre as estantes de livros velhos. Levantei-me como quem procurava uma saída para fugir dali, a porta estava à minha frente, mas, a desilusão era tanta que não pude enxergá-la, ou, se a enxerguei não tive coragem de ir.

      Uma parte de mim dizia-me para deixar aquela livraria, entretanto, a outra parte de mim queria saber a verdade. Eu dei ouvidos à minha segunda metade – estava na hora de saber qual era a veracidade dos fatos, mesmo que para isso eu tivesse de lançar mão da verdade que haviam construído para mim.

     Controlei-me. Eram tantos os sentimentos dos mais controversos que envolviam-me naquele momento, e então pude perceber – minhas mãos emitiam uma luz – tinha de me controlar mais, senão, não sabia o que poderia acontecer. A magia dos bruxos é comandada pelos seus sentimentos – e os meus estavam em conflito.

-Eles são amigos dos seus verdadeiros pais. E, por isso assumiram o compromisso de protegê-la. – Continuou o velho Feeld. – Você e seus pais corriam perigo.

-Quem quer destruir-me? – Perguntei, entretanto, me recordei do ataque dos lobisomens e do Elfo que tinha-me aparecido, ele falou da Irmandade – a Irmandade!? – Arrisquei.

-Isso mesmo. Depois de escreverem o livro, os sete poderosos feiticeiros o esconderam para que não caísse em mãos erradas, caso isto ocorresse seria o fim. Feitiços muito poderosos com capacidade de dar a imortalidade ou de viajar pelo tempo são alguns exemplos de como este livro é poderoso e, por isso, cobiçado por muitos. Os vampiros, seres inescrupulosos das trevas, reuniam-se em secretos encontros sob a escuridão da noite. Tramavam alguma coisa da qual ninguém mais que eles poderia ter conhecimento.

     E ele continuou a história. Contou-me que Gregori, meu suposto avô e líder do clã dos bruxos, quis firmar uma aliança com os vampiros, uma aliança feita de interesses, ganância e inteligência.

     Foi a chamada Aliança da Nox – da Noite, em latim. Este acordo pretendia derrubar a Rainha Vitória I do trono inglês de uma vez por todas. E os bruxos juntamente com os vampiros se alternariam no poder daquele país, logo, toda Europa mais cedo ou mais tarde estaria submetida aos seus comandos, alastrando-se posteriormente, pelo mundo. Os humanos e todas as outras raças estariam sob o julgo dos dois clãs aliados, que se tornariam os mais poderosos já existentes.

     Para consolidar esta aliança, Clarissa, filha de Gregori, foi dada em casamento ao então líder dos vampiros, Gog. Este por sua vez, era causador de grande temor e ódio, espalhando desespero pelos lugares onde passava. Os domínios de Gog se estendiam de Portugal ao extremo leste europeu findando-se onde hoje se localizam os países Nórdicos e Bálticos descendo até os países que se encontram com o Mar Negro – com exceção da Ucrânia, que pertencia ao Império Russo, dominado pelos andróides.

     Ao apresentar-se à Clarissa ficou encantado com a grande beleza daquela que viria a ser sua esposa. Mas, a paixão ou o desejo que sentia pela jovem bruxa não lhe tirara da cabeça sua sede por poder e glória.

     Clarissa ficara amargurada com tal destino que lhe esperava – casar-se com alguém tão repugnante e frio como um vampiro. Tentara convencer seu pai de não fazê-la casar-se. Contudo, Gregori era um homem irredutível. Nada o faria voltar atrás de sua decisão.

     Como era de costume entre os clãs, a noiva ia visitar o noivo algumas vezes durante o período de um ano, antes do casamento – para familiarizar-se com sua nova moradia. Afonso, irmão de Gog, era um gentilhomme, muito diferente de qualquer outro homem de seu clã. Duque de Villemonde ficara a cargo levar sua futura cunhada para a França, mais exatamente para o Castelo de Montségur na região francesa de Midi-Pyrénées.

      Durante estas viagens à França – que aconteciam uma vez por mês, - Clarissa apaixonara-se perdidamente por Afonso. Logo este sentimento tornou-se recíproco, e consolidou-se numa noite de tempestade, dentro de um dos quartos escuros do navio, enquanto atravessavam o mar furioso que separava a ilha britânica do restante do continente europeu.

     Numa destas viagens Afonso jurou amor eterno à Clarissa, - um enorme espectro de temor rondava-os, e eles sabiam disto. Gog mantinha toda sua confiança em Afonso, o que poderia provocar ainda mais sua ira, caso viesse saber da traição.

     Contou-me ainda sobre Lívia, uma vampira, que desde sua infância vivia no castelo do futuro marido de minha mãe. Tal jovem tinha dentro do coração um amor não correspondido por Gog, este que sempre cuidara-lhe como uma filha – já que Lívia foi abandonada ainda recém-nascida na porta do Castelo de Montségur.

     Sempre bela e sedutora, usava dos mais inteligentes artifícios para impressionar aquele que desejava possuir, porém, Gog não conseguia ter por ela outro sentimento que não o amor paternal. Os vampiros formaram a Irmandade, ela serviria para levar seu clã ao poder – e se preciso fosse, acabar com todos que ousassem servir-se de empecilho em seu caminho.

      Cada palavra que deixava a garganta do senhor Mc Feeld era pra mim surpresa e revelação – afinal, era minha vida narrada por um estranho. Fiz cara de pranto, dúvida, questionamento... Enquanto minha história era novamente escrita, mas, agora parecia-me mais convincente ao mesmo tempo que verdadeira.

     Em uma das poucas pausas de silêncio que fazia-se no decorrer do contar de minha biografia ouvi pegadas que vinham da parte da frente da loja, na mesma parte onde ficavam as grandiosas estantes de livros. Vinham em passos rápidos e fortes, senti que eram três, quatro, talvez.




Empecilho



     O velho Mc Feeld correu para fechar a porta do escritório onde estávamos, puxei Alice para trás de mim e aguardei a entrada daqueles que vinham do desconhecido – confesso que eu estava espantosamente assustada comigo mesma devido à coragem em que me encontrava.

     Fechei os olhos e comecei a movimentar as mãos esperando a hora certa de atacar – os bruxos mais evoluídos não precisam de varinha porque elas são um instrumento de canalizar a energia do seu usuário e, eu já tinha a muito superado o estágio de bruxa inexperiente.

     Lembrei-me de uma vez quando eu tinha uns quatorze anos de idade e estava a treinar feitiços com Marcos no escritório de nossa mansão que ficava na cidade de Montreal, localizada na parte sudoeste de Ottawa, Canadá– aquele que a poucos instantes atrás eu chamava de pai.

-Conjure.

-Tenho medo, não quero ferir-te, papai – disse-lhe em tom de preocupação pelo que poderia acontecer – lembra daquela vez que eu só queria paralisar o Ronald e acabei matando-o?

     Marcos agachou-se. Olhando-me nos olhos disse que de fato, eu era muito forte, tal como era Clarissa Cromwell nos tempos de outrora, entretanto, falou-me também sobre a delicadeza dos gatos quanto à magia – você precisa ter controle sob seus poderes e eu estou aqui para ensiná-la, mas, sem varinha – foram suas últimas palavras antes de e por em posição de defesa.

-Então... – deixei minha varinha em cima da escrivaninha ao lado e somente movimentando as mãos em um ritmo harmonioso conjurei – Vasconvellius!

     O fiz rodopiar rapidamente por três vezes no ar antes de cair brutalmente, quebrando as madeiras de carvalho que revestiam o chão. O impacto foi muito grande, jamais vi tal feito vindo de mim.

     Carolina uma vez havia matado um pobre elfo que se aproximava de nossa casa. Ele vinha em passos cautelosos pelo nosso jardim – quando ainda moráva-mos em Montreal- e só o vi desfalecer em meio à grama verde. Papai ignorou o acontecido e mamãe lamentava pela pobre criatura.

     Nada acusava a consciência de Carolina, nada.

     Contudo, agora eu estava ali, esperando por criaturas as quais eu não tinha conhecimento. A porta abriu-se violentamente, de tal modo que acabara quebrando seus vidros. Eram três. Não era possível ver suas faces, pois estavam encapuzados, envoltos em uma capa negra e de longas mangas largas – impossibilitando de ver ao nu qualquer parte do seu corpo.

-Entregue-se criança. – Proferiu um dos encapuzados com uma voz rouca e sussurrante. – Será melhor para todos.

- Equifanattus! –Conjurou o senhor Mc Feeld para defender-me.

     Nada foi sentido pelo invasor – o que fez surgir em mim um misto de medo e coragem – Vocês são caçadores de recompensas da Irmandade, não é? – Bradei, recebendo uma risada demoníaca como resposta.

- Vasconvellius! – Proferi, esperando acontecer o pior que acontecera ao meu pai quando lancei-lhe este feitiço.

     Mas, para minha surpresa nada aconteceu, os homens encapuzados defenderam-se da magia. Estáva-mos em ar puros, mais uma batalha.

-Vampiros! – Disse Mc Feeld assombrado.

     Partiram para cima do velho livreiro e de Alice fazendo-os reféns. –Entregue-se, ou eles sofreram as conseqüências. - Sussurrou novamente um dos vampiros encapuzados.

    Eu não tinha outra opção a não ser obedecer-lhe e, quando ia levantar minhas mãos ao alto em sinal de rendição ouvi ao longe sons que anunciavam a chegada de alguém, então pensei em Clara Cromwell como minha mãe e pedi-lhe que nos livrasse dali.

    Os vampiros também perceberam que alguém chegava o que lhes fizeram preparar-se para um possível embate. Um silêncio assustador tomou aquele lugar e, antes que eu pudesse elevar minhas mãos ao céu ele chegou.

     Estava encapuzado exatamente como os vampiros que já estavam lá. Houve uma luta terrível. Aproveitei a reação daquele estranho para reagir também. Seriamos mais fortes e eficazes.

-Tirem os capuzes deles! – Ordenou o senhor Mc Feeld.

     Mandei Alice esconder-se e lutamos por mais alguns instantes, eu juntamente com o estranho conseguimos pouco a pouco descobrir-lhes o corpo para que a luz do sol os fizesse pó.

     Os vampiros tinham a pele muito pálida, caninos pontiagudos, umas aparências sedutoras quão perigosas e traiçoeiras transformavam-se em poeira enquanto o sol queimava sua pele, fazendo ao mesmo tempo surgir uma fumaça cinzenta – com um odor nada agradável. Restava então um único vampiro. Este agarrou o velho livreiro desaparecendo dali depois de ter conjurado o Nullavassavus.




O ENCAPUZADO



     Tudo havia passado. Alice veio ao meu encontro, abraçando-me forte, como se eu fosse algo seguro para se agarrar, para proteger-se. O senhor Mc Feeld havia sumido e com ele toda minha verdadeira história.

     Minha vida ficou pela metade, dividida em duas partes, a parte da possível verdade de Clara Cromwell ser minha mãe e a parte de Marcos, Paloma e Carolina como minha família. Enfim, surgira em mim mais perguntas que antes, agora eu não sabia ao certo quem era de fato meu pai. E se eu fosse filha de Afonso? E se eu fosse filha de Gog? E se, e se...

     O chão tinha-me fugido aos pés – nada mais era seguro, nada mais fazia-me sentir convicta. Aquele sujeito que aparecera para salvar-nos a vida ainda estava lá. Ele flutuava alguns centímetros acima do carpete persa.

     Nada podia-se ver nele. Nem ao menos suas mãos – tudo estava coberto pela capa negra e se alongava em capuz cobrindo seu rosto. Ficamos de frente um para o outro e ninguém teve coragem de dizer alguma coisa.

      Um cheiro doce e atraente alastrou-se pelo escritório com uma brisa de verão que invadiu o local. Quando o silêncio já incomodava-me os ouvidos, resolvi falar.

-Obrigada por ter nos salvado a vida – aquele cheiro era conhecido, eu sabia disto, então, atrevi-me a perguntar – Mas, porque nos ajudou se também tu és vampiro?

     Ele fez ressoar pelo ambiente um riso discreto e charmoso – Por nada, bela dama. Quanto à ajuda, digamos que há mais coisas para você entender do que imagina.

-Então me conheces também? Como isto é possível?

-Clara Cromwell, filha de Clarissa Cromwell. Como poderia alguém não conhecer-te? A Irmandade te persegue. Querem tua morte a qualquer custo.

-Por quê? Nada fiz para merecer tal perseguição. Conte-me o que aconteceu. Pelo menos... diga-me quem é meu pai.

-Teu pai é Gog. Vai ao aniversário do Imperador, estarei lá e poderei contar-te mais. –Depois disto conjurou o feitiço de Nullavassavus desaparecendo, deixando-me ali com Alice.

     Mais um afim de contar-me a minha verdadeira história. E se nada daquilo tudo fosse verdade? Jurei a mim mesma não contar coisa alguma à Paloma e Marcos. Guardaria segredo, eu e Alice.

     Tudo se esclareceria na hora certa. Enquanto caminháva-mos de volta pra casa meu pensamento foi tomado por aquele em quem mesmo eu não conhecendo confiaria, Victor. Onde estaria aquele que salvara-me a vida das feras medonhas da noite?

     Pedi à Alice que ficasse comigo. Ao chegar-mos em casa subimos para meu quarto, onde fiquei a olhar minha tatuagem e a escrever tudo em meu diário – só ele e Alice sabiam de tudo e continuaria assim até que chegasse a hora certa.

-Clara. E se aquele velho estivesse mentindo para nós? – Indagou-me Alice. – Tenho medo que te machuques. Sabe, a duquesa e o duque são bons pais para você e para a Carolina, será que eles teriam coragem de mentirem a ti este tempo todo?

-Sinceramente amiga, já não sei de mais nada. Tudo o que eu considerava verdade talvez não passe de mentiras. Mas, agora, sem o senhor Mc Feeld para me ajudar... o que ele falou-nos fazia sentido. Se eu sou metade bruxa e metade vampira, é possível que eu seja o resultado de Clarissa com Afonso ou com Gog. Entretanto, aquele vampiro misterioso afirmou que meu pai seria Gog.

-E se ele estiver mentindo?

-Você tem razão. Não confiarei e não duvidarei de nada. Iremos à comemoração do aniversário do Imperador e vamos ver o que espera-me por lá.

-Conta comigo sempre.

-Contarei.

     Naquele dia forcei-me a ter um comportamento normal. Fingi estar tudo bem. Carolina olhava-me estranho – digo, mais estranho do que o de freqüência.

     Almoçamos sem nada dizer um ao outro. Papai parecia preocupado com alguma coisa, mamãe como sempre tranqüila quão doce – pensei em ir ver meu vestido para o aniversário do Imperador – disse de modo a quebrar o frio silêncio que estava entre nós.

-Que bom, querida. Irei contigo, acho também que a senhorita devia vir conosco Carolina – sugeriu mamãe – toda a nobreza da corte estará presente. Confesso que estas festas deixam-me muito contente em poder mostrar quão bonita família possuo. – veio-me então à cabeça que tudo ali poderia ser uma mentira – poucas são como nós.

-Irei com você mamãe... com a senhora e com a Clara. Afinal de contas, quando chegará teu futuro noivo maninha? – provocou-me Carolina com um sorriso malévolo na face.

-Tenho boas notícias. – Alertou papai. - Teu noivo chegará um dia depois do aniversário do Imperador.

-Então... – proferiu mamãe.

- Daqui a sete dias. – eu disse em voz baixa.

     Terminamos o almoço e imediatamente subi ao meu quarto. Comecei pensar em tudo o que estava-me acontecendo. Tirei da gaveta do criado-mudo o meu diário, e como num ato quase que póstumo, me pus a escrever desilusões e esperanças semelhantes a estrelas que começavam a ofuscar-se no céu sombrio da noite.




A VISITA 
 


      Alice já tinha ido antes mesmo do almoço, e naquele instante eu estava sozinha, pelo menos achei que estava. No mesmo momento que passava uma brisa cálida pelo meu corpo, na mesma hora em que eu dava fim aos acontecimentos escritos no meu diário, ele miou.

     Era aquele gato misterioso – era Victor. Olhei para a varanda do meu quarto, onde do para-peito escrevia ao luar, e lá estava ele. O gato olhava pra mim com aqueles olhos tão azuis quanto duas pedras de quartzo.

     Miava como quem quisesse carinho e cafuné. Bati a mão sobre a cama, ao meu lado – era o sinal para ele vir até ali. O bichano não demorou, saltou de onde estava sem pestanejar e depois de passos pequenos e apressados saltou novamente para cima do colchão dando um miado de carinho.

      Sorri estendendo a mão para lhe afagar as orelhas. De pêlo macio, tão quão perfumado Victor, o gato, roçava em minha mão. Fechei o diário, pois já não conseguia mais concentrar-me na escrita.

     De repente, o então felino começou sua transformação, Victor estava a sua forma original, a de homem. Então ele puxou o lençol que cobria minha cama e com este se envolveu – porque depois que virava homem sempre ficava nu.

     Gritei. Virei para o lado tapando meus olhos – Clara? O que está acontecendo? – Havia esquecido-me da presença dos meus pais em casa. Papai vinha às presas saber o porquê de meu grito. Logo bateram à porta – Clara! Clara! O que está acontecendo.

     Se pegassem-nos ali seria a morte. Levei a mão à boca em sinal de silêncio. Victor estava nervoso e com as mãos segurava o lençol. Eu não sabia o que fazer – juro! Notei que mamãe e Carolina já estavam com papai.

-Está tudo bem. Tudo bem.

-Mesmo? – Perguntou-me papai.

-E se está tudo bem por que gritou? – Indagou Carolina como quem procurava um modo de fazer desgraça – E por que não abre esta porta?

-É que, é que... Eu estou arrumando-me e uma agulha que eu usava para consertar o vestido furou-me o dedo. Foi isso.

-Hum. Qualquer cosa nos chame minha filha.

-Está bem papai.

     Quando todos haviam saído eu caí na cama e soltei um suspiro profundo. Alívio. Victor ria de mim. A sorte foi eu ter trancado a porta antes de entrar no quarto – você é muito criativa em mentir, não? – disse-me rindo.

-Nunca fui boa em mentiras. Eu sou muito transparente, entretanto, hoje, digamos que me superei – ri.

-Perdão, mas, parece que sua irmã não gosta nem um pouco de ti. Se não fosse sua resposta ela teria feito seus pás entrarem aqui.

-Sim, é verdade. Mas, mudando de assunto, por onde andou?

-Por aí. Andando sem rumo certo.

-Por acaso você conhece o senhor Mc Feeld?

-Conheço-o. Por quê?

-Então sabe da minha história? Deixa eu ser mais objetiva com você. Ele disse-me que eu sou filha de Clarissa Cromwell, você sabia disto?

      Ele baixou a cabeça, fez um silêncio profundo, depois respondeu-me com um simples “sim”. Contei-lhe tudo o que havia acontecido a mim desde que sumira – só não mencionei a parte que homem encapuzado disse de eu ser filha de Gog.

     Victor ouvia-me com muita atenção, só tinha dito ser muito estranho o fato de um vampiro ter protegido-me de seus iguais. Depois de terminar de falar-lhe todos os fatos, uma lágrima abandonou meus olhos, no mesmo instante pude sentir a mão macia de Victor que vinha acariciar-me o rosto.

     Abaixei a cabeça e ele levantou-a cheio de carinho. Olhou-me nos meus olhos, puxou-me pela nuca até que nossas faces ficaram tão próximas a ponto de eu poder sentir sua respiração. Já não sabia pra onde olhar, se para seus olhos ou se para sua boca – e aconteceu. Beijamo-nos.

     Fora um beijo tão demorado quanto inocente. Todos os problemas haviam fugido de mim, da minha mente. Só existia eu e ele – ninguém mais. Era como se o mundo todo fossemos só nós dois.

-Você precisa dizer-me sobre mim. – Sussurrei em seu ouvido. – Eu preciso saber.

- Tudo o que está acontecendo é por causa de sua tatuagem – falou abraçando-me forte. – Não quero te perder e não vou. Não precisa ter medo, eu vou te proteger, está me ouvindo? – Mas eu não respondi. Então ele segurou meu rosto em frente ao seu com suas mãos. – Olha pra mim Clara. – Olhei meio que sem jeito. – Confia em mim? – Balancei a cabeça afirmando. Ele sorriu para mim com seus olhos brilhantes, por fim, abraçando-me mais uma vez, agora mais forte que antes.

- É melhor você ir agora – disse em baixo tom. Carolina estava do outro lado da porta a nos espionar. – Vai. Depois te explico.

     Ele aproximou-se de mim mais uma vez e sussurrou-me ao ouvido – voltarei hoje à noite, espera-me com tua lua. Transformou-se novamente em gato, saltou ao para-peito da varanda, olhou para mim e sumiu.

      Voltei a pegar meu diário na gaveta do criado-mudo, naquele momento encontrava-me inspirada para contar qualquer coisa que fosse, inclusive os mais belos poemas de amor.

 
     Eu estava apaixonada. Isto não podia ser negado. Disfarçado sim, mas, nunca negado.